quarta-feira, maio 3

água




Num belo dia de outono na Grécia, as pessoas deixaram de prestar culto regular a deusa da divina beleza Afrodite.
Abandonaram seu santuário para admirar a extraordinária formosura de uma simples mortal: Psiquê (alma).
Menosprezada pelos homens, que preferiam homenagear uma beldade humana, Afrodite teve um acesso de raiva.
E para vingar-se, pede a seu filho Eros (amor) que use suas flechas encantadas e faça Psiquê apaixonar-se pela criatura mais desprezível do mundo.
Eros parte para cumprir sua missão.
Mas a beleza de Psiquê era tão grande, que ao vê-la, Eros distrai-se e fere-se com uma de suas próprias flechas.
Vítima do encantamento em que enredava deuses e mortais, o deus feriu-se de amor.
Apaixonado, nada disse à sua mãe; apenas limita-se a convencê-la de que finalmente estava livre da rival. Ao mesmo tempo que oculta seu sentimento, torna Psiquê inatingível aos mortais terrenos.
Embora todos os homens a admirem, nenhum por ela se apaixona, e apesar de infinitamente menos belas, suas irmãs logo se casam com reis. Psiquê, amada por Eros sem que o saiba, a ninguém ama.
E porque é uma beleza humana cobiçada por um deus, permanece só.
A solidão de Psiquê preocupou tanto seus pais, que foram então consultar o oráculo de Apolo, afim de buscar auxílio.
Entretanto Eros já havia tornado Apolo seu aliado em sua conquista amorosa.
Assim para ajudar Eros, Apolo ordenou aos pais da princesa que a vestisse em trajes nupciais, que do alto de determinada colina uma serpente alada e medonha, mais forte que os próprios deuses, iria torná-la mulher.
Embora a revelação do oráculo fosse terrível, o rei e a rainha nada mais poderiam fazer senão cumprir o que fora determinado.
Deixaram-na sozinha na colina, aguardando corajosamente seu triste destino.
Mas a espera é tão longa que Psiquê logo adormece.
E até ela chega a suave brisa de Zéfiro, que a transporta para uma planície coberta de flores.
Perto correm as águas claras de um regato e mais adiante ergue-se um magnífico castelo. Ao despertar, Psiquê ouve uma voz que a convida a entrar no castelo, banhar-se e depois jantar.
No interior do castelo, não encontra ninguém, mas sente-se como se estivesse sendo observada.
E no jantar doce música a envolve, mas continua só.
No íntimo, porém, pressente que, à noite, chegará o esposo que lhe fora prometido, a terrível serpente alada.
Realmente, ao anoitecer, chega até ela Eros, protegido pela escuridão.
Psiquê não pode ver-lhe o rosto; mas não sente medo, porque seu temor é banido pelas palavras apaixonadas e pelas ardentes carícias do deus.
Durante algum tempo Psiquê entregou-se ao amante velado e mesmo sem ver sua face , dedicava-lhe intenso amor.
Numa de sua visitas noturnas, Eros lhe faz uma advertência: que se precavesse contra uma desgraça que lhe poderia advir por intermédio das irmãs, que pranteavam-na onde fora deixada e do mesmo modo acrescentou, para evitar a desgraça, não deveria ela jamais tentar ver o rosto do amado.
A princesa embora prometesse ambas as coisas, deixou-se arrastar pela tristeza e pela saudade. E tanto chorou e pediu, que Eros consentiu na visita das jovens.
Todavia, esclareceu: reaproximando-se delas, Psiquê estava reatando laços terrenos e constituindo seu próprio sofrimento.
Depois, mais uma vez, fê-la prometer o que era de tudo o mais importante: jamais tentaria ver-lhe o rosto.

No dia seguinte, Zéfiro levou as irmãs de Psiquê ao palácio.
De início foram só as alegrias do reencontro.
Às perguntas das jovens sobre o marido, porém, a princesa respondeu com evasivas. Aos poucos, o sentimento das irmãs em relação a Psiquê foi mudando.
Antes choravam supondo-a infeliz; depois, partiram invejosas de sua felicidade.
E resolveram vingar-se.
Retornando ao castelo por permissão de Eros, dessa vez movidas pela inveja, elas ardilosamente fizeram com que a desconfiança surgisse no coração de Psiquê.

Percebendo por suas contradições que ela não sabia realmente quem era seu marido, como então poderia estar segura de que não era o monstro descrito pelo oráculo de Apolo? E, se era realmente belo o jovem, por que se ocultava nas sombras da noite? Invadida pela dúvida e temor, Psiquê acabou aceitando o conselho maldosamente planejado pelas irmãs: deveria preparar uma lâmpada e uma faca afiada: com a primeira, explicaram as moças, poderia ver o rosto do esposo; com a segunda, matá-lo se fosse o monstro.]
À noite, retorna Eros, ardente e apaixonado como sempre.
Enquanto se entrega ao amor, Psiquê esquece o próprio medo e a dúvida, mas depois, quando Eros adormece, a incerteza volta a invadir-lhe o coração. Silenciosa, apanha a lâmpada e ilumina o rosto do esposo.
E detém-se deslumbrada: não é um monstro, pelo contrário, é o mais belo ser que jamais poderia ter existido.
Arrependida e em êxtase, derruba sem querer uma gota do óleo quente da lâmpada no ombro do amado.
Ele desperta, sobressaltado, e percebe o acontecido.
Com profunda tristeza, Eros vai embora.
E tentando alcançá-lo Psiquê apenas ouve-lhe ao longe na escuridão: "O amor não pode viver com desconfiança."
Eros volta para junto da mãe, pedindo-lhe que cure seu ferimento no ombro.
Mas ao contar o que ocorreu, Afrodite percebe que foi enganada e passa a alimentar apenas um pensamento: encontrar a rival e vingar-se.
Abandonada e em desespero, Psiquê põe-se a percorrer o mundo em busca do amor perdido e de templo em templo pede ajuda dos deuses.
Sem conseguir auxílio, Psiquê vai à presença da própria Afrodite, na esperança de encontrar com ela seu amado Eros.
Mas junto à deusa, encontrou apenas zombaria, e a imposição de uma série de provas humilhantes.
A primeira tarefa consistia em separar, até a noite, imensa quantidade de grãos miúdos de diversas espécies.
Parecia ser impossível cumpri-la no prazo estabelecido.
Mas tão grande era o sofrimento de Psiquê, e tão angustiado seu pranto, que despertou a compaixão de formigas que passavam no local.
Elas rapidamente separaram os grãos por espécies, juntando-os em vários montículos.
A primeira tarefa estava cumprida, o que deixou Afrodite ainda mais irritada.
Ordenou-lhe que dormisse doravante no chão, alimentando-se apenas de alguns pães secos.
Esperava assim acabar com a beleza que lhe arruinara os cultos.
A segunda tarefa veio no dia seguinte: deveria ir a um vale cortado por um regato e lá tosquiar os terríveis carneiros do sol que pastavam.
A lã desses carneiros era de ouro, e um pouco dela a caprichosa Afrodite desejava para si.
Quando já estava exausta de tanto andar e a ponto de suicidar-se, nesse instante de hesitação entre a procura e a morte, Psiquê ouviu uma voz vinda dos caniços à beira do regato: "Não era necessário enfrentar os terríveis carneiros para tentar tosquiá-los, disse a voz; bastava esperar que eles saíssem das touceiras de arbustos espinhosos, quando fosse beber água: nos espinhos ficariam presos alguns fios de lã que poderiam ser facilmente apanhados."
Não satisfeita por mais uma tarefa cumprida, Afrodite incumbiu-a de uma terceira tarefa e ainda mais complicada: teria de subir a cascata que provinha da nascente do rio Estige e trazer à deusa um frasco contendo um pouco daquela água escura.
As pedras que davam acesso à cascata eram íngremes e escorregadias, e a queda da água era extremamente violenta.
Impossível satisfazer a exigência de Afrodite. Só se pudesse voar Psiquê realizaria a tarefa.
Estava já disposta a desistir, quando surgiu uma águia, que lhe tirou o frasco da mão, voou até a fonte e apanhou uma porção do líquido negro.
A água do Estige, porém, não saciou em Afrodite a sede de vingança.
Psiquê deveria ainda executar uma Quarta e difícil tarefa: ir ao Hades, persuadir Perséfone a colocar numa caixa um pouco de sua beleza.
Como pretexto, diria à rainha dos Infernos que Afrodite precisava dessa beleza para recuperar-se das longas vigílias à cabeceira do filho doente.
Psiquê partiu, procurando o caminho dos Infernos.
Já havia andado muito e sentia-se perdida, quando uma torre , apiedada de sua aflição, ofereceu-se para ajudá-la.
Minuciosamente descreveu-lhe todo o itinerário que levava ao reino de Perséfone, mas lhe fez um alerta: "você encontrará pessoas patéticas que lhe pedirão ajuda, e por três vezes terá que escurecer seu coração à compaixão, ignorar seus apelos e continuar.
Se não o fizer, permanecerá para sempre no mundo das trevas.
Psiquê fez tudo o que lhe indicou a torre, e assim conseguiu chegar à presença de Perséfone.
Solícita, a rainha dos mortos atendeu ao pedido da jovem e entregou-lhe a caixa solicitada por Afrodite.
Sendo instruída quanto ao caminho de volta, o retorno ficara mais fácil para Psiquê, mas estava longe ainda a hora de recuperar o amor.
A próxima prova por que passaria Psiquê não lhe foi imposta pelo ciúme de Afrodite, mas por sua própria vaidade.
Temendo que tantas atribulações a tivessem tornado feia, não queria perder o amor de Eros.
A tentação foi grande.
E Psiquê não resistiu: no meio do caminho, abriu a caixa.
Para sua surpresa nada encontrou. Mas tamanho sono a tomou, que ali mesmo caiu, adormecida, como se estivesse banhada pela beleza da morte.
Enquanto dormia, Eros, curado de sua ferida, abandonava a mansão materna em busca da amada.
Vagou por toda a parte, até que finalmente a encontrou deitada ao relento.
Aprisionou o sono que pesadamente lhe cerrava os olhos e recolocou-o na caixa.
Em seguida despertou-a docilmente com a ponta de uma de suas flechas.
Com grande meiguice chamou sua atenção pela curiosidade que a fizera abrir a caixa.
Depois mandou-a entregar a encomenda a Afrodite, como se nada tivesse acontecido.
Terminadas as provações de Psiquê, que recuperara o amor.
Para que nada mais acontecesse à amada, Eros dirigiu-se ao Olimpo para pedir a Zeus que o unisse em casamento à bela jovem.
Mas para atendê-lo era necessário que a princesa recebesse o dom da imortalidade.
Hermes foi buscar Psiquê e levou-a à presença dos deuses.
O próprio Zeus deu-lhe de beber a ambrosia, que lhe conferiu a imortalidade.
Depois declarou-a oficialmente esposa de Eros.
Impotente tornara-se o ciúme de Afrodite.
Psiquê agora era imortal e estava unida para sempre a Eros.
Nada mais podia separá-los.
Dessa união nasceu Volúpia.