quinta-feira, março 16

instante

És apenas o viajante de agora, com tua face de agora, tua boca de agora, teus ouvidos de agora, tuas roupas de agora, as que vestes agora, a mochila de agora, com as coisas que escolheste para agora, neste agora em que todos te vêem, ouvem, apreendem, esse tu que és agora, pois não te sabem da infância, não tens pai, nem mãe, nem irmãos, não brincavas com amigos na rua e nunca foste à escola, pois não te sabem da juventude, nunca deste o primeiro beijo, não foste a matinês e não tiveste teus porquês, pois não te sabem das influências, dos sonhos antigos, das velhas lágrimas e dos tenros sorrisos, pois não te sabem do antes, antes de tua chegada, em que estrada nasceste, em quais rios entre vales te banhaste, que colinas ganhaste, que montanhas escalaste, em que planícies e planaltos repousaste, em quais mares e oceanos mergulhaste, em que areias, enfim, chegaste, e tua sina é sê-lo assim, em cada novo lugar reconstituir a vida desde o primeiro sopro para que tu mesmo não esqueças de ti próprio, para que a tua mais profunda identidade não se deixe dissipar pelo tudo entorno, para que o teu saber-te não se perca pelo saber-te alheio, e seguir viagem sempre o mesmo em ti, sempre um novo, um outro, aos outros, até que decidas ficar, o que pode acontecer agora, aqui ou acolá, até que aceites que digam que te conhecem mesmo com parca visão efêmera, do agora, até que vivas em plena visão, do sempre.

André Kano

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